NIHIL POTESTAS...
Corria,
eu, sob uma chuva miúda que durava, já, mais de hora, e que prometia não
parar tão cedo. Eu tinha que sair logo pela manhã, e não queria perder minha
corrida matinal. Vejo, ao longe, um carro que se aproxima e ao se aproximar,
diminui a velocidade. Penso ser algum amigo, ou algum corredor conhecido. Mas,
para surpresa, mas não tanto, vejo algumas pessoas rindo e fazendo gestos
significando que eu era um “panaca” por estar correndo embaixo de chuva.
É
interessante como as pessoas julgam os outros. Julgar, sem saber os motivos do
outro, é pura insensatez. As pessoas, porém, acham que tem direito a fazer
julgamento de atitudes e pensamentos alheios. E acham, sempre, que estão
certas. Mas, eu digo, antes de julgar os outros, é mais útil nos conhecermos,
e para isso, nada melhor do que nos observar em um relacionamento. Ao nos
relacionar, nós temos a grande oportunidade de nos conhecer. Além do jeito que
falamos, andamos, escrevemos, comemos, enfim, agimos no dia a dia, é necessário
conhecermos nossos sentimentos, emoções
e ações nos relacionamentos. Ao correr, falar, andar, comer, etc., se não o
fizermos de maneira fisiológica, vamos ter uma dor aqui ou ali, uma rouquidão
ou outro sintoma qualquer. Conhecer nossas características, portanto, é
importante, porque podemos cultivar a maneira correta de andar, correr, falar
etc. e, assim, evitar problemas. Quantas pessoas conhecem exatamente como andam,
correm, falam, os movimentos que fazem quando comem, quando conversam, quando
estão ouvindo outra pessoa?
Mas,
infinitamente mais importante é perceber, durante um relacionamento, nossas
características psíquicas e emocionais. Nossos conflitos e condicionamentos,
certamente estão produzindo não rouquidão, ou uma dorzinha na coluna, mas
sofrimento. E muitas vezes, um sofrimento danado.
Assim
é que ao nos relacionarmos, é importante perceber o que sentimos e qual é
nossa reação. Nossos sentimentos, pensamentos e atitudes, revelam quem somos.
Nossos sentimentos, ao nos relacionarmos, mostram a estrutura psico-emocional
que dirige nossa vida, e se soubermos olhar, conseguiremos entender porque temos
tal sentimento e tal reação. Esse é o ponto fundamental. Porque sentimos,
pensamos e agimos dessa forma? Não devemos usar justificativa nem condenação em relação a como somos.
Apenas, procurar entender o porque somos assim. Dessa forma, entendendo em
profundidade porque sentimos e agimos desse ou daquele modo, conseguiremos
abordar as camadas mais profundas da nossa psique. E esse é o caminho para
resolver as pendências, coisas mal resolvidas e conflitos em nosso interior. Só
assim conseguiremos melhorar nossa qualidade de vida e evoluir. Mas isso não é
fácil porque, de uma maneira geral, não sabemos olhar, pois ao olharmos nossos
sentimentos e reações, estamos olhando através de nossos
condicionamentos e conflitos, e assim temos a tendência em achar que o
que sentimos e fazemos está certo. Temos que aprender a olhar para nós mesmos,
para os outros e para tudo em nossa vida, deixando de lado nossos preconceitos,
juízos, e “ certezas”. Temos que olhar como se estivessemos assistindo a um
filme, onde o protagonista somos nós mesmos. Temos que olhar de forma
completamente imparcial, apenas como uma testemunha do acontecimento, sem deixar
nossa maneira de ver as coisas influenciar nossa visão da coisa. Só assim,
veremos a coisa como é. É difícil, mas é possível. É por isso que Sócrates
receitava o “ conhece a ti mesmo”, o que sempre tem sido recomendado por
todos os pensadores sérios, como Krishnamurti, Ramana e outros tantos.
É
assim, que, eu procurei não julgar as pessoas que passavam e riam da minha
aparente “loucura” de correr em baixo da chuva, e ainda mais, sozinho. Posso
não concordar com elas, posso não me interessar em cultivar amizade com
aquelas pessoas, mas não me cabe julgar, porque não sei quais fatores
influiram para que tais pessoas tivessem essa estrutura mental e conseqüente
atitude.
Gosto de correr de manhã, não me incomodo se está chovendo, desde que não seja aquela chuva que encharca o tênis. Acho que devo fazer algo pela minha saúde física e mental, e sou eu que tenho que fazer. É assim que penso, assim é minha estrutura mental. Sem Deus, nada acontece, nada é possível, mas é através das minhas atitudes, dos meus braços, das minhas pernas que Deus me ajuda. Lembro-me de uma história sufista, onde o discípulo de um Mestre, durante certa viagem, não amarrou os camelos à noite, apenas rezou para que Alá não deixasse os camelos fugirem. Fugiram. E o Mestre, na manhã seguinte, lhe disse para orar, sim, mas também para amarrar os camelos, pois Alá iria agir, sim, mas através de suas mãos. “Ajude-se que Deus te ajudará”. Como diziam os latinos: “Nihil potestas nisi a Deo“ ou seja “nenhum poder a não ser por intermédio de Deus”. Portanto, se eu não fizer minha parte, como poderei receber as bênçãos do Senhor? E uma grande porção da “minha parte” é o hábito tão salutar de correr.