Anísio
parou um momento de desenhar e olhou sua barriga através da camisa aberta. Uma
gota de suor escorreu do peito indo se alojar no umbigo. Sorriu e ouviu sua
velha mãe perguntar se queria um suco de laranjas,
gelado. Era assim o dia
todo, sucos, café, bolachas, etc., e ele engordando.
Pensando bem, a vida de Anísio era um saco.
Já entrando nos 30, era solteiro, morava com a mãe, que cuidava dele
como se fosse ainda um bebê. Anísio pra cá, Anísio pra lá, cuidado com o
vento, não durma com o pé pra fora,
cuidado com isso e com aquilo...
Era
desenhista de histórias em quadrinhos. Seus desenhos, comprados por revistas
americanas, iam para os States, e
apareciam falando inglês, se é que americano fala inglês. Anísio
tinha uma conhecida
inglesa, que
quando conversava em inglês-americano, dizia que se sentia
“bárbara”, no sentido literal da palavra.
Seu
trabalho lhe facultava ficar em casa o dia todo, pois
o Sedex levava e trazia as
encomendas e o trabalho
realizado.
-
Já volto, mãe...
-
Cuidado, dirija devagar. Cuidado com os trombadinhas nas esquinas. Cuidado
com....................
A
cada “cuidado com...”
Anísio automaticamente balançava a cabeça, concordando sem prestar
atenção.
Saiu
com seu fusca, e durante o trajeto
percebeu que estava quase sem gasolina e após a ponte da Cidade Universitária,
parou num posto. Encheu o tanque, que
duraria um mês, pois quase nunca saia, e quando foi dar a partida......neca.
Nenhum barulhinho. Saiu do carro, abriu
o motor, olhou, fuçou em cima, em baixo, mas como não entendia nada de
carro, este continuou sua greve, sem se mexer.
Nesse
momento ouviu uma voz forte, de baixo profundo, que vinha de trás de seus
ouvidos dizendo:
-
Mas não é que estou vendo meu querido amigo Anísio?
Ficou
um momento sem se mexer. Veio à sua mente uma cena escolar onde o colega
Paulinho-trovão (assim chamado pela sua voz), solicitado pela professora,
recitava diante da classe em silêncio o seu poeta
preferido, Camões: “alma minha gentil que te partiste, desta terra tão cedo
descontente, repousa lá no céu eternamente........”
Anísio
olhou para traz e viu seu amigo abrindo os braços, com seu sorriso largo e
notou que o amigo estava mais encorpado, queimado de sol (nos tempos de escola
parecia uma lagartixa) e com um ar de felicidade.
- Oí Paulinho, quanto tempo.
Paulinho-trovão
olhou a barriga de Anísio:
-
Ah, casou, boa vida e o resultado é esse...
-
Não, não casei não, nem sequer namoro. Sabe, trabalho muito, não tenho
tempo...
-
Ah, então continua tímido como sempre hein?
Anísio
sentiu o rosto corar e desconversou. Depois de olhar rapidamente o fusca,
Paulinho sentenciou:
-
Precisa trocar a bateria. Deixa comigo. Entrou em seu carro, pegou um celular
minúsculo e ligou pro seu mecânico.
-
O Mané vai
demorar uns 40 minutos. Já está providenciando a bateria. Deixa a chave ai com
o rapaz do posto.
-
Mas e se não for a................
-
Claro que é.......... eu me formei
engenheiro.... pode crer.... manjo dessas coisas... (e uma enrugada de testa
denunciou uma certa dúvida a respeito, ele que nunca tinha sido muito chegado
ao estudo).
Só
então Anísio percebeu que Paulinho estava de calção, tênis e ficou sabendo
que o amigo ia dar “uma corridinha” na USP.
-
Olha, o Mané vai demorar, venha comigo, estamos no portão da Cidade Universitária
e enquanto eu corro você pode
tomar um pouco de sol pra levar um bronzeado legal.....você está muito
branquelo.
Anísio
titubeou mas acabou indo. Enquanto se alongava e conversava com Anísio,
Paulinho viu chegar um amigo de
corrida, o gaúcho, apresentou-os e saiu
pra sua corrida. Logo depois Anísio ficou sozinho
em baixo de uma árvore, e num ímpeto inusitado pra ele, tirou a camisa e começou
a caminhar sob o sol.
Quem diria, num dia de trabalho, esse vagabundão tomando sol na USP. Assim ia pensando Anísio, ensaiando um sorriso de milionário em férias, como os que via no cinema, mas o sorriso nos lábios desapareceu ao se lembrar da mãe. Chi.... vou chegar tarde pro almoço e vai ser aquela papagaiada de novo...
Anísio
se incomodava com a maneira com que
sua mãe o tratava mas nunca havia reclamado, a não ser em pensamento. Coitada,
afinal ela tinha se dedicado tanto ao filho depois que o marido morrera! Ele
precisava ser paciente com ela. E assim, enquanto pensava nisto e naquilo, os
minutos voaram.
Paulinho
voltou do treino, olhou Anísio e riu:
-
Caramba , meu, em meia hora você ficou
um peru....
Anísio
olhou os braços e percebeu que estavam vermelhos. Aí, percebeu que estava já
com as costas e o rosto ardendo.
Voltaram
para o carro. Já com bateria trocada,
Paulinho lhe deu o cartão de endereço, mas Anísio não tinha nenhum pra dar
(afinal, pra quem dar?) e se despediram com votos de se encontrarem brevemente.
-
Telefona...
-
Sim, certamente - disse Anísio, sem a mínima idéia se veria o amigo
novamente.
Chegou
em casa, a mãe olhou, gritou espantada, entrou correndo
no quarto e voltou com um pote suspeito, lhe pedindo para passar no rosto o
creme que tinha comprado anos atrás.
Anísio
se olhou no espelho e soltou um “barbaridade tchê!”.
Que gozado, havia repetido aquela expressão que o
tal amigo de Paulinho havia soltado ao
deparar seu carro novinho salpicado pelos
passarinhos. Era um gaúcho falante aquele!
Pegou o pote, abriu e repelido por um cheiro horroroso esticou-o para a mãe e disse- NÃO!......
A mãe não acreditou (pela primeira vez na vida Anísio tinha dito não à ela), virando-lhe as costas, entrou no quarto e não falou mais com Anísio naquele dia.
A
noitinha, Anísio refletia que tinha tido o dia mais gostoso
de sua vida.
A
semana se foi e no domingo, alguma coisa o impelia a sair.
Coisa rara. Tomou o carro e se
dirigiu à USP. Portão fechado.
Parou, não entendeu, perguntou ao guarda e ficou sabendo que a USP fechava aos
domingos (ninguém, nem a USP é de ferro...).
Perguntou sobre as pessoas que corriam e lhe foi dito que estavam
espalhadas por aí em vários lugares. Voltou pra casa, procurou freneticamente
o cartão de Paulinho até encontra-lo e ligou sem saber ao certo que desculpa
dar. A mulher de Paulinho atendeu e disse que ele estava no Ibirapuera,
com o grupo da corrida.
-
Ah!... disse Anísio, desligando após
balbuciar uma desculpa.
Durante a semana, com a mãe já lhe dirigindo a vida novamente, sentiu uma imensa vontade de falar outra vez com o amigo e lhe telefonou. Combinaram de se encontrar no Ibirapuera, no domingo seguinte, pois sábado Anísio teria muito trabalho. Como sempre o fazem os corredores ao sentirem oportunidade com um novato, Paulinho intimou Anísio a começar a correr já no próximo domingo e lhe perguntou se tinha equipamento de corrida e, como não tivesse, foi orientado pelo amigo onde consegui-lo. Anísio teve curiosidade em saber como ficaria vestido de “atleta” e remexendo seu armário, encontrou uma bermuda velha, vestiu-a e olhou espantado para a barriga: agora havia duas, uma acima da cintura da bermuda e outra abaixo. A bermuda apertada tinha dividido a barriga em duas! Viu que precisava mesmo comprar algo adequado pra domingo. Foi à loja recomendada, ficou sem jeito diante da mocinha que o atendeu (como é que um gordo daqueles ia comprar calção de corredor?). Finalmente escolheu a roupa mais discreta da loja, comprou um tênis confortável e passou o resto da semana ansioso como o diabo, desenhando barbaridade para ficar com domingo livre. Teve vontade até de criar, para a revista que desenhava, um super-herói que também era corredor e sempre alcançava os bandidos, após quilômetros de perseguição (o super - herói quando treinava, vestiria uma roupa igual à que tinha comprado).
Domingo chegou. Anísio se dirigiu ao Ibirapuera e 6:30h da manhã desceu do carro, desajeitado e se sentindo praticamente nu apesar do calção e camiseta, e quase entrou de volta no fusca. Mas.....afinal.....bem....conseguiu entrar no parque. Logo a seguir chega Paulinho-trovão.
-
Aí batuta, diz o amigo. Vem cá conhecer a turma.
-
Este bigodudo é o Geraldo, aquele o Alfredo, e assim foi desfilando o nome do
pessoal, todos maratonistas e aguerridos defensores da corrida. Anísio percebeu
o corpo magro e a aparência de saúde e vigor de todos. Ficou sem jeito. O
resto da turma já estava correndo.
-
Vamos andar um pouco pra alongar e aquecer, depois eu vou correr e você começa
a andar e trotar, dentro do que se sentir capaz. Enquanto andavam,
Paulinho desfilou uma série de conselhos, como “ouvir a voz do
corpo”. “começar devagar pra sentir o corpo” etc.
-
Oi, Giba.... esse que passou tem
mais de 40 maratonas.... olha aquele é o .....
E
assim Paulinho foi desfilando os amigos que passavam correndo.
Finalmente,
após o aquecimento Paulinho saiu correndo e Anísio trotando. Após meia hora
de exercício Anísio sente sede, para em frente a uma
barraquinha pra comprar água e vê uma moça muito bonita, de shorts e
camiseta, enfrentando problema com dinheiro.
Ela já havia aberto a lata do refrigerante e a vendedora não tinha troco.
Anísio, que era um tremendo cara legal, pegou a carteira (tinha comprado
um calção com bolso, pois como ia sair “sem carteira e sem documento?”),
comprou seu refrigerante, e se ofereceu para pagar também o da moça.
Ela
sorriu, aceitou e começou a conversar com Anísio. Este,
encabulado pela beleza da moça
(seu nome era Rita, a psicóloga), se perguntava como é que aquela jovem tão
graciosa podia estar conversando com um cara desajeitado e gordo como ele. É que Rita, muito lúcida, já havia sacado o interior
bonito de Anísio, sem se incomodar com o físico desbundado do mesmo.
Bem,
o que aconteceu depois é muito bonito, mas a história está ficando longa, e
eu deixo pra contar em outra ocasião. Agora apenas vou dizer como as coisas estão:
Anísio
começou a correr sempre ao lado da Rita, orientado pela turma da corrida, uma
vez que já se tornou amigo de todos (afinal, existe uma grande solidariedade e
amizade entre os corredores), emagreceu 18 kg, está bronzeado, corre
folgadamente seus 15 km e está namorando
firme com Ritinha, como a chama carinhosamente (dizem que vão casar). E, querem
saber, sente-se imensamente feliz.
E a mãe? .................... Ora, a mãe .........................